sábado, 27 de setembro de 2008

Quando a história é madrasta… (croniqueta de fim-de-semana)

Terá sido em fins de 1998, ou durante o ano seguinte, a última grande entrevista de Álvaro Cunhal a uma cadeia de televisão. A dado passo, e no seguimento da conversa, Cunhal diz que está a concluir um livro, que sairá para breve. A jornalista pergunta se é outro livro de Manuel Tiago, ao que Cunhal responde que esse só escreve ficção e este livro é sobre questões concretas.
O livro chama-se “A verdade e a mentira na Revolução de Abril” (a contra-revolução confessa-se).
Constitui este livro, inegavelmente, uma ferramenta importante para os historiadores que se queiram debruçar sobre aquela época. Sempre pensei, quando a obra deu à estampa que Cunhal iria ser desmentido, ou contraditado. Não foi, nem uma coisa nem outra. Fazê-lo seria mexer no que não queriam. Então a melhor maneira de passarem despercebidos os protagonistas da história seria silenciar a obra. Por isso não teve qualquer destaque, qualquer repercussão, na imprensa, escrita ou falada.
E não dizia mais do que aquilo que toda a gente sabia. Exceptuando pormenores. Alguns deliciosos. Soares reunia-se, juntamente com Manuel Alegre, o tal que gosta de dizer que é de Esquerda, com Carlucci. Com o patrão. Um assassino encartado. Com uma grande folha de serviços. Era “secretário político” do embaixador dos Estados Unidos quando Lumumba foi assassinado, ajudou Tchombé e Mobotu no Zaire, Lacerda no Brasil, e esteve no Chile, no golpe de 11 de Setembro. Em Zanzibar é que deu nas vistas, tendo sido, por isso, expulso. Esta obra tem uma particularidade. O histórico comunista corrobora as suas afirmações com declarações dos próprios. Muitas delas em entrevistas, a ufanarem-se como agentes da História. Não dá margem à mentira ou à especulação.
Agora que alguns documentos da CIA foram desclassificados o tema tem agora destaque na imprensa. E ganha actualidade. E para alguns, incrédulos, até ganha mais credibilidade.
Transcrevo de seguida uma passagem dessa obra de Álvaro Cunhal:
Em relação ao 25 de Novembro, revelaram-se muitas verdades nas confissões feitas pelos protagonistas vinte anos mais tarde.
No dia do golpe, antes de partir para o Porto, Mário Soares, como atrás referimos, teve um encontro com o Ministro da Grã-Bretanha onde este lhe prometeu apoio, por intermédio do Intelligence Service.
Pode perguntar-se, que têm a ver com a CIA os serviços de espionagem referidos nesse
encontro?
A resposta encontra-se numa observação de Rui Mateus relativa ao papel da “estratégia da CIA”. Callaghan, diz Rui Mateus, “optara também pela tese da CIA” e disponibilizou “a cooperação dos seus serviços secretos com os seus homólogos americanos”. Carlucci, diz Mateus, “é um dos heróis do 25 de Novembro” (O Diabo, 19-11-1996). Lembre-se que em princípios de Novembro Carlucci visitou mais de uma vez o Norte do país, encontrando-se no Porto, Viseu, Vila Real, Chaves e Braga com bispos, governadores civis e presidentes de câmaras. E se não se deslocou a Viana do Castelo foi porque os trabalhadores se opuseram à projectada visita aos estaleiros e, face à tensão existente, Carlucci desistiu.
Tomem-se as informações sobre as relações e cumplicidades. Mas não se afirme que Carlucci foi “um dos heróis do 25 de Novembro”. Nem ele, nem Soares. Porque um e outro optaram pelo plano da ida para o norte e de desencadear a ofensiva militar para esmagar a “Comuna de Lisboa”. E esse plano falhou. Outra importante intervenção da CIA desenvolveu-se na infiltração no movimento sindical, visando a sua divisão e desagragação.
Quando Soares visitou os Estados Unidos, em Setembro de 1975, encontrou-se com Georges Meany, o patrão da AFL-CIO. É o próprio Soares que conta: “Meany encorajou-me e, com o apoio concreto do sindicalista Brown, que conhecia bem as questões europeias, criámos um esquema de cooperação que, mais tarde levaria à formação da UGT”. (Maria João Avilez, Soares. Ditadura e Revolução, ed. Cit, p.353).
Preciosa confissão. Porque Irving Brown era de há muito conhecido, precisamente na Europa, por actividades divisionistas do movimento sindical e era conhecido, não tanto por ser um sindicalista norte-americano, mas por ser um conhecido agente da CIA, qualidade além do mais testemunhada pelo antigo dirigente da CIA Thomas Braden.”

E é assim. O velho comandante disse uma vez que o poderiam condenar. Que pouco importava. A História absolvê-lo-ia. A Soares ninguém o condena. Mas, também, diga-se em abono da verdade, nem a História o absolverá.
Triste fado. "Miguel de Vasconcelos" revisitado.


Adenda: o cartoon é da autoria do artista Fernando Campos, e foi publicado aqui e aqui.

9 comentários:

Anónimo disse...

Um artigo com base numa recolha muito acertada, esclarecedor quanto basta para quem procure a verdade dos acontecimentos, uma ajuda inestimável para a compreênsão do papel do PCP na consecução do direito à liberdade no nosso país e das dificuldades que significaram o esquerdismo, a manipulação e o oportunismo maquiavélico de Mário Soares.

Fernando Samuel disse...

«A verdade e a mentira...» é um livro tão importante que nenhum dos «estoriadors do sistema» se lhe refere nas «estórias» que vão contando sobre esse período...

Excelente post.

Um abraço.

Anónimo disse...

Esta e outras obras servirão um dia para que os historiadores possam analisar, contrapôr, reflectir e escrever sobre estas e outras questões. Todas as questões, históricas, ou não, são poliédricas dai a necessidade de deixar assentar a poeira do imediato para que, se isso alguma vez for possível, a história não é juiz, atente-se, se consiga alinhavar algo que permita uma outra compreensão dos acontecimentos. Uma coisa os historiadores aprendem, por isso aprendem, embora exista quem pense que não, aprendem e muito, é a de que ninguém, seja ele quem for, conta a verdade toda. Churchil dizia, não sei se com razão ou não que um político devia saber mentir. No caso em apreço os historiadores teriam por exemplo de se socorrer dos arquivos do KGB para perceber o nível de influência geo-estratégica das duas potencias na pseudo-revolução portuguesa (o termo é meu). É um caminho de análise, quanto a mim mais correcto, dado que, embora se diga isenta, a história escrita pouco tem de isenta, dai as diversas correntes que a soletram e as diferentes influências políticas de quem a escreve e de quem a produz. A História é sempre escrita pelos vencedores, convém não esquecer. A isenção, essa provoca imensos amargos de boca, sobretudo aos historiadores que resolvem "fazer" história e analisar todos os ângulos possíveis do poliedro da realidade. Vitorino Magalhães Godinho, por inflûencia dos "Annales", chamou-lhe "história total", hoje reconhece-se a esta a sua impossibilidade, porque o grau de análise que implica, profundo, jogando sobretudo ao nível da quase imobilidade acarreta consigo a interdisciplinariedade, porque a análise histórica joga-se em múltiplos (desde a sociologia, à psicologia, á etnografia, etc.) no fundo recorre a todos os campos das ciências humanas. E mais digo que sobre a obra que refere pode ter caído o silêncio, mas é no silêncio que se produz a reflexão. Victor de Sá escrevia que a "libertação nacional do 25 de Abril trouxe consigo, portanto, neste domínio das Ciências sociais, o retomar de uma tradição cultural interrompida há meio século. Interessa agora procurar através dos guias seguros da linha nacionalista, não seguindo-os cegamente mas criticamente, como é óbvio, equacionar de novo os problemas autênticos da nossa sociedade e das nossas tradições culturais, porém reavivados pelo novo condicionalismo da nacionalidade portuguesa: a descolonização e o consequente retorno de Portugal às suas raizes. Será a partir desta situação, agora irreversível, que, por certo, teremos que voltar a equacionar o ideal anteriormente frustado da "Vida Nova"." Sendo assim o trabalho dos historiadores é muito mais profundo e está para além da legitimação de pequenos episódios, estes servem apenas para equacionar os acontecimentos, tal como pequeno foi o papel - histórico - de Miguel de Vasconcelos, o verdadeiro, porque só existiu porque se escondeu no armário. Desculpe-se o "lençol" mas estou numa fase de extensão. E mais lhe digo que a verdade nos acontecimentos não existe, a verdade é construção do espírito, por isso longe do acontecimento. Esses aconteceram simplesmente. E muitos são falsos. A destrinça é coisa para gerações e não para o imediato. A História, felizmente, distende-se pelo tempo e não na mera espuma dos dias, nem das situações. Um dia, assim começam as outras histórias...

alex campos disse...

Álvaro Cunhal não pretendeu escrever a História. Escreveu a sua verdade, digamos a sua interpretação sobre acontecimentos que viveu,e que de alguma maneira teve de influenciar ou tentar influenciar, conseguisse ou não, na qualidade de político, de revolucionário, de homem com responsabilidades num partido político com influência social, logo não seria sua intenção, penso eu e não devo estar muito errado, influenciar seja quem for com esta obra.
Agora, o que eu escrevi é que esta obra, não sendo possivelmente das mais importantes obras suas, é seguramente um instrumento imprescíndivel para os historiadores que queiram, sem preconceitos, debruçarem-se sobre esta época.
E a História,como julgamento que é, utilizando uma frase feita, veio dar-lhe razão, com a desclassificação de documentos de uma organização "altruísta" chamada CIA.
Desclassificação, quer dizer, para mim todos os documentos dessa "humanista" organização deviam ser considerados desclassificados.

Um abraço

Anónimo disse...

Ai como Portugal seria feliz e progressivo se Cunhal tivesse ganho a batalha! Como estaríamos todos pobrezinhos mas muito contentes, venerando o mausoléu do grande dirigente pai desta pátria comunista! Ó ditosa terra que tais filhos tendes! Como teria sido diferente este mundo-cão se a revolução tem triunfado neste cantinho à beira-mar plantado! Em poucos anos teríamos conquistado a Europa para mais perto ficarmos de Moscovo, cidade farol dos proletários!nem Gorbachev teria surgido do inferno para arruinar o nosso paraíso terreno! Ó como é bom tomar o desejo pela realidade...

alex campos disse...

Claro que fico com o "ego" inchado ao ter entre os comentadores do meu bloguito um neo-liberal de serviço.
Ele fica feliz ao dizer ao dono que me chateia, possivelmente a fazer-se a um aumentozito, eu fico feliz porque fico com a ideia que sou actuante, interventivo, que incomodo, enfim, essas coisas todas.
Ficamos todos felizes.
Possivelmente eu mais, porque não me escondo, assumo-me, luto, tenho objectivos e a convicção de que não chegamos, nem chegaremos ao fim da História, ela está sempre em marcha.
Agora, dizer que Portugal e os portugueses estão bem e recomendam-se, estão felicissimos com a situação actual e que não é preciso fazer algo para mudar o estado a que isto chegou, só mesmo no anonimato.
Sr. Anónimo dê-se ao respeito.

António Chaves Ferrão disse...

Caro Alex
Cunhal não fez qualquer interpretação pessoal da História. Documentou-se abundantemente de informações que sairam dispersas na imprensa periódica ou não, mais a televisiva e da rádio e demonstrou que os que se tornaram adversários da Revolução do 25 de Abril mentiram com quantos dentes têm na boca. Esta é uma obra de investigação, não um artigo de opinião. Sem a ter lido, é gratuito falar dela. Quem parte de uma posição de discordância inicial mas seja suficientemente honesto para ler o livro, seguramente não encontrará lá elementos que corroborem preconceitos (sejam psicológicos, sociológicos ou entnográficos). Para mim teve ainda o valor adicional de ABC ter-se detido algum tempo em assuntos que estão no centro da sua formação académica, a saber, o Direito. O ataque que faz àqules que em Portugal se tentam escudar debaixo do rótulo do "Estado de Direito", e principalmente as ideias que ele próprio contrapõe, estou certo que estão entre as páginas nais brilhantes da literatura política actual.
Ademais, embora não seja o fulcro, tem pormenores deliciosos, como a exclamação do ex-agente da PIDE que fazia a ligação com Espanha para a entrada de armas em Portugal. Certo dia, am Badajoz, onde Franco havia estacionado uma força de blindados, ao ouvir o oficial do Exército espanhol dizer-lhe que não estivesse preocupado que "em seis horas estariam em Lisboa", respondeu: "Então eu junto-me ao comunistas".
Todas as fontes escritas são referidas escrupulosamente, mas o livro não se resume a uma descrição dos factos. Os visados, que Álvaro Cunhal acusou de mentirem, que podem fazer? Queimar os números do "POVO LIVRE" e do "PORTUGAL SOCIALISTA" e dos jornais diários donde as decalrações foram retiradas? Não é fácil. De facto, a resposta mais ajuizada é tentar que a obra caia no esquecimento. Para mim, não caiu.

António Chaves Ferrão disse...

Caro Alex
Cunhal não fez qualquer interpretação pessoal da História. Documentou-se abundantemente de informações que sairam dispersas na imprensa periódica ou não, mais a televisiva e da rádio e demonstrou que os que se tornaram adversários da Revolução do 25 de Abril mentiram com quantos dentes têm na boca. Esta é uma obra de investigação, não um artigo de opinião. Sem a ter lido, é gratuito falar dela. Quem parte de uma posição de discordância inicial mas seja suficientemente honesto para ler o livro, seguramente não encontrará lá elementos que corroborem preconceitos (sejam psicológicos, sociológicos ou entnográficos). Para mim teve ainda o valor adicional de ABC ter-se detido algum tempo em assuntos que estão no centro da sua formação académica, a saber, o Direito. O ataque que faz àqules que em Portugal se tentam escudar debaixo do rótulo do "Estado de Direito", e principalmente as ideias que ele próprio contrapõe, estou certo que estão entre as páginas nais brilhantes da literatura política actual.
Ademais, embora não seja o fulcro, tem pormenores deliciosos, como a exclamação do ex-agente da PIDE que fazia a ligação com Espanha para a entrada de armas em Portugal. Certo dia, am Badajoz, onde Franco havia estacionado uma força de blindados, ao ouvir o oficial do Exército espanhol dizer-lhe que não estivesse preocupado que "em seis horas estariam em Lisboa", respondeu: "Então eu junto-me ao comunistas".
Todas as fontes escritas são referidas escrupulosamente, mas o livro não se resume a uma descrição dos factos. Os visados, que Álvaro Cunhal acusou de mentirem, que podem fazer? Queimar os números do "POVO LIVRE" e do "PORTUGAL SOCIALISTA" e dos jornais diários donde as decalrações foram retiradas? Não é fácil. De facto, a resposta mais ajuizada é tentar que a obra caia no esquecimento. Para mim, não caiu.

Anónimo disse...

Não colocava em causa o recurso às fontes, nem a qualidade dos escritos aqui referidos, mas já que sobre isso se escreveu direi apenas que, ao citar fontes, é lhe reconhecida credibilidade, enquanto tal, estas, ao serem citadas, são consideradas fidedignas (passaram pelo crivo da critica) e, aos seus criadores, em assim sendo, não se pode imputar que hajam mentido, quanto aos actos ou factos. Se se utilizam os factos por estes referidos não se pode afirmar que mentiram. Simplesmente poder-se-á fazer uma leitura diferente das consequências dos actos praticados. E sabemos que melhor que um Index é esperar que o silêncio faça o seu trabalho. Mas esse pode crer que não é o meu caso. E a construção da história é sempre, e quase sempre, a escrita e análise pessoal baseada em factos que se recolhem e alinham consoante a vontade do escritor seja este historiador ou não. Até os factos podem ser direccionados consoante a vontade do escritor ou historiador. É ficção afirmar-se que não se faz uma leitura pessoal mesmo que apenas sejam citados elementos factuais. Por vezes até uma fonte normalmente considerada com idónea, pode mentir. Cabe ao historiador destrinçar esse outro facto. Uma fonte que mente pode ser tão importante como aquela que normalmente se considera fidedigna e que confirmada nos diz a verdade. Uma coisa são factos outra a forma como estes se encadeiam uns nos outros através da reflexão e esse é sempre um acto pessoal. E deixo escrito que não aprovo o silênciamento de qualquer obra. Venha ela de onde vier e seja de quem for. Apenas a minha leitura condicionará ou não o seu esquecimento a nível pessoal e nunca colectivo.