quinta-feira, 9 de junho de 2011

Camões e as altas torres

um texto de Eugénio de Andrade


De Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu pobre. Morreu mais pobre ainda (se não miseravelmente), ele, que acumulou bens que milhares e milhares de homens não têm chegado para delapidar. E será difícil exaurir tão fabulosa fortuna. Porque – quem o duvida? – foi Camões que deu à nossa língua este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita e felina, esta modelação de vagas sucessivas e altas, este mel corrosivo da melancolia. Daí ser raro o verso português digno de tal nome que as águas camonianas não tenham molhado de luz, desde as mais ásperas das suas consoantes às vogais mais brandas.

Fora do nosso coração, não sabemos onde Camões nasceu; nem o ano ou o dia em que saiu da “materna sepultura” para o primeiro amanhecer. Como não sabemos onde estudou ou quem lhe ensinou o muito que sabia. Nem isso importa. Nalgumas linhas da sua poesia, e sobretudo nas poucas cartas que indubitavelmente são dele, pode ler-se que, como português, encarnou até à medula toda a nossa condição: pobreza, vagabundagem, cadeia, desterro. “Erros”, “má fortuna” e “amor ardente” se conjuraram para fazer daquele alto espírito do Maneirismo europeu uma das figuras mais desgraçadas da via-sacra nacional. Por “erros”, talvez se possa entender um cristianíssimo arrependimento daquele marialvismo da sua juventude; a “má fortuna” não pode ter sido senão a de ter vivido num tempo em que “Portugal era uma casa sem luz em matéria de instrução”, e se preparava fatidicamente para abandonar todas as suas guitarras nos campos de Alcácer Quibir; quanto ao “amor ardente” – não foi o próprio Camões que se mostrou dividido entre o límpido apelo dos sentidos e toda uma platonizante teoria de amor bebida em Petrarca e Santo Agostinho?

Não sabemos também quem o poeta tenha amado, para lá das anónimas “ninfas de água doce” do Mal-Cozinhado e outros bordéis de Lisboa. Mas que tais “ninfas” tiveram na sua vida importância, ninguém pode duvidar. As cartas de Camões, e como fonte da sua vida privada nada temos mais seguro, além de nos darem notícia do seu espírito arruaceiro, quase não falam de outra coisa. Que a sua poesia só muito raramente tem a ver com os “pagodes” de Alfama é óbvio, mas dali deve ter partido algumas vezes para, depois de metamorfoses várias, voar muito alto, com sempre aconteceu, particularmente em herdeiros da cortezia e do dolce stil nuovo. Porque a verdade é que nenhuma poesia portuguesa partiu tanto dos sentidos para tanto se desprender deles, como a de Camões. Talvez Aquilino tenha razão: Camões deve realmente ter saboreado com o corpo todo as coisas boas, defesas ou permitidas da vida, mas teremos de acrescentar que nenhum outro poeta foi capaz de se erguer tão alto ao céu platónico das ideias, e tão pungentemente meditar sobre as “mudanças” a que todo o amor está sujeito, ou tão dramaticamente arrancar do “abismo infernal de (seu) tormento” a transparência de um canto dilacerado por uma lúcida consciência de desamparo e desconcerto. E não me venham com maniqueísmos: “damas da corte” de um lado e do outro “damas de aluguer” – o amor ergue os seres ao horizonte da dignidade, e Camões, ou quem quer que seja, se na verdade amou, nunca fez outra coisa.

Se não estou em erro, foi António Sérgio quem mais incisivamente trouxe o lirismo camoniano para a esfera do neoplatonismo, e sublinhou, além de preocupações religiosas e morais, a raiz metafísica da sua poesia amorosa. Ao pôr-se o acento sobre o carácter intelectual desta poesia, procurava-se corrigir uma ideia bastante corrente de que o poeta seria predominantemente sensorial, antimetafísico, e não sei que mais. Claro que Camões, como homem, medida de todas as coisas, foi um e outro, porque nada impede que a música de uma natureza mesmo profundamente sensual, mas de eminente capacidade visionária, possa subir às mais altas torres; que se saiba, não há incompatibilidade nenhuma entre o estar-se eroticamente “a prisões baixas atado” e ter no “alto pensamento” a sua naturalíssima complementaridade.

Afinal, este homem que deixou fama de desabusado, este pobre soldado raso que regressa de Ceuta a “manqueja(r) de um olho” (para o dizermos com terríveis palavras suas), que serviu na Índia durante cerca de três lustros sem sequer ter ganho para as passagens de regresso à pátria, este homem que, segundo um dos seus primeiros biógrafos, ao morrer não tinha um lençol para lhe servir de mortalha, estava destinado a consolidar a Hierarquia com o seu Canto – o supremo ressoar das águas de todos os nossos mares e de todos os nossos olhos.

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